Presidente Borges
Este é um roteiro de um curta, bem curta, que desenvolvi enquanto estava na faculdade.
É uma ideia que pretendo levar a cabo um dia, de 4 curtas que formariam um único filme, unidos pela temática, com poucos atores, centrado em apenas um cenário e poucas externas, com uma visão bem própria do fantástico.
Dos quatro, três roteiros estão prontos, quem sabe um dia isso não vê a luz do dia.
Com vocês, Presidente Borges, o segundo curta:
PRESIDENTE BORGES
Fábio Ochôa
FADE IN
FLASHBACK – ESCADARIA DA FACULDADE – EXT./DIA
Imagens difusas, sons de carros passando, flashes de multidão, pessoas na rua aplaudindo, fotos sendo batidas e finalmente o som de um tiro. Em seguida, sons de pânico, confusão, e na tela, um balão de criança solto, voando.
BANHEIRO- INT./DIA
Um homem (PRESIDENTE BORGES) acorda dentro de um banheiro. Ele está de terno, sentado na privada, seu despertar é abrupto.
Ele pára, arqueja. Coça a cabeça, bastante suado, respira fundo. Parece prestes a vomitar. Olha ao redor, com confusão evidente, para ver onde está. Finalmente, olha para a porta do banheiro.
Lê a pichação na porta: Magnus est semita super ut oblivio. Abaixo aparece a legenda de tradução: Longo é o caminho para o esquecimento.
Ele respira fundo e abre a porta. Está em um vasto banheiro, semelhante ao de um hotel refinado, com espelhos, torneiras térmicas, ambiente higienicamente limpo e asséptico.
Há uma torneira pingando. Isto é algo que se repete até o fim da seqüência, reforçado pelo áudio, junto com o ruído constante da lâmpada fluorescente.
Borges caminha até a pia com imenso espelho, molha as mãos e massageia o rosto. Encara seu próprio reflexo. Algo o incomoda.
Tateia o peito. Olha seus dedos, estão sujos de sangue.
A torneira segue pingando.
Abre o casaco. Com nervosismo crescente começa a desabotoar os botões do terno, por fim, quase arrancando eles, retira o casaco com violência. Bem leve, os ruídos de tiros voltam, como a ressoar em sua cabeça.
INSERT – FLASHBACK – ESCADARIA DA FACULDADE – EXT./DIA
Borges descendo a escadaria, com os seguranças em meio à uma multidão, crianças segurando balões, é atingido por um tiro, todos se agitam à sua volta.
Borges Deitado no chão sangrando enquanto os seguranças tentam acudi-lo, olha fixamente alguma coisa no céu.
Um balão de criança voando, enquanto o ruído da multidão em pânico continua.
BANHEIRO- INT./DIA
Borges retira todo o casaco, sua camisa branca está empapada de sangue, ele suspende o casaco por alguns segundos, seus dedos hesitam com medo de tocar o próprio corpo, o casaco cai.
Ele está surpreso. Quando olha para o espelho, está de novo usando casaco. O desabotoa, está lá a mesma e imensa mancha de sangue. Olha para o chão onde o outro casaco acabou de cair. O chão está limpo. Vazio, a torneira segue pingando. Cada vez mais alto.
Tira de novo o casaco, em um gesto rápido e o atira ao chão, quando olha rápido para o reflexo. Ele está de novo usando o casaco.
Uma mão (HOMEM DE FRAQUE) aperta a torneira. Ela pára de pingar, Borges olha. O Homem de Fraque está com uma toalha branca, vestindo um fraque alinhado e luvas brancas, junto com ele no banheiro.
HOMEM DE FRAQUE
Senhor presidente.
Borges olha para o homem de fraque, olha para o espelho. Há suspense na cena. O homem de fraque pendura a toalha no suporte. Com cuidado.
PRESIDENTE BORGES
Você… Sabe quem eu sou?
HOMEM DE FRAQUE
Sim senhor. O senhor é o homem que unificou toda a América do Sul, o homem que desafiou o Norte, construiu pólos industriais, transformou a economia, reformou a educação e transformou esperança em realidade para milhões de pessoas.
O senhor é o Presidente. O Presidente Borges.
Todos o conhecem.
Borges tenso, concorda com a cabeça. Há medo em seu olhar, passa os dedos pelo peito, observa os dedos manchados de sangue.
PRESIDENTE BORGES
Eu…
O homem de fraque permanece impassível. Segue o ruído da fluorescente.
PRESIDENTE BORGES
…Eu estou morto não?
Esfrega os dedos nervoso, inconsciente do próprio tique.
HOMEM DE FRAQUE
Temo ter que lhe dizer que sim, senhor.
Borges concorda com a cabeça. Leva a mão esquerda à boca, seus olhos se fecham por alguns instantes. O homem de fraque apenas olha, impassível. Borges, ainda de olhos fechados, sorri de maneira dolorida.
PRESIDENTE BORGES
Gostaria de dizer que estou surpreso, mas… Mas… Não, não estou.
Sacode a cabeça e olha novamente para o homem de fraque, seu olhar é angustiado, quase uma súplica.
PRESIDENTE BORGES
Eu só queria mais tempo.
Encosta novamente o punho fechado à boca.
PRESIDENTE BORGES
Tão pouco tempo. Não é justo, sabe, muito pouco tempo para fazer tudo. Uma vida é muito pouco.
HOMEM DE FRAQUE
Com certeza, senhor.
PRESIDENTE BORGES
Foi na escada, não? Na saída da Universidade, não? (bate no próprio peito) Parecia um soco, um soco! Você cai, sente frio e nota que está sangrando e é isso.
Borges pensa em silêncio.
PRESIDENTE BORGES
E é assim que você morre.
O homem de fraque concorda com a cabeça.
PRESIDENTE BORGES
Pegaram o assassino? (sorri consternado) Pelo menos isso?
HOMEM DE FRAQUE
Não senhor.
PRESIDENTE BORGES
Minha filha…
…Ela viu isso?
HOMEM DE FRAQUE
Todo mundo todo viu, senhor presidente.
Borges pára, concorda com a cabeça, coloca as mãos no rosto e após longos segundos, treme e soluça, o choro é forte, abafado, tenta sufocar as lágrimas mas não consegue. Por instantes fica assim. O homem de fraque permanece impassível.
A porta se abre. Se enxerga relances do ambiente externo, ele é iluminado a ponto de não se enxergar quase nada, somente as silhuetas. Sons de conversa, drinques, um bar, alguém canta “Moon River” ao piano. Entra no banheiro um homem cabeludo e barbudo (JESUS) com um copo vazio na mão. Ele nunca é mostrado inteiro, somente os detalhes: os pés descalços com cicatrizes, no piso, a mão com cicatrizes segurando um copo, a barba e os olhos fundos.
Caminha até a pia, olha para o homem de fraque e para o Presidente Borges soluçando e enche o copo com água. Passa o dedo na água e ela ganha uma coloração avermelhada, vira vinho. Sem ligar para os dois homens, sai e volta para o salão.
HOMEM DE FRAQUE
Senhor Presidente.
Borges limpa os olhos, se recompõe.
PRESIDENTE BORGES
Sim?
HOMEM DE FRAQUE
Eles estão lhe esperando.
Olha para a porta, se entrevê o bar iluminado, a silhueta do homem que entrou no banheiro, tocando o copo de vinho e bebendo. Há risadas e conversa animada, agora alguém toca Cole Porter ao piano.
PRESIDENTE BORGES
Quem me espera?
HOMEM DE FRAQUE
Todos os homens que foram mais que simples homens, senhor. A irmandade. A confraria de homens notáveis.
Escutam-se mais risadas e a música suave e animada do salão.
PRESIDENTE BORGES
Você tem um nome?
HOMEM DE FRAQUE
Não, senhor Presidente.
Nomes são pesos que os vivos carregam.
Borges olha para o salão.
PRESIDENTE BORGES
E se eu não quiser passar a eternidade aqui e se eu simplesmente quiser ir para outro lugar?
Onde as pessoas comuns vão, céu, inferno?
HOMEM DE FRAQUE
Receio que isso não seja possível, senhor. Só existe uma saída daqui.
PRESIDENTE BORGES
E qual é?
HOMEM DE FRAQUE
O esquecimento.
Silêncio entre os dois.
PRESIDENTE BORGES
E se eu disser que às vezes… Eu não queria ter sido quem fui?
Que às vezes eu só queria ter sido alguém ordinário? Você…Pode saber às vezes o peso de ser quem sou?
Borges sacode a cabeça, lento.
PRESIDENTE BORGES
Mas eu não tive escolha. Nunca tive.
HOMEM DE FRAQUE
Isto não importa agora, senhor.
Silêncio. Borges puxa um papel do bolso, fica olhando para ele de maneira desinteressada, perdido em seus próprios pensamentos.
HOMEM DE FRAQUE
O cavalheiro que entrou aqui…
PRESIDENTE BORGES
É ele.
INSERT – BAR – INT./DIA
Aparece Jesus no bar, sem mostrar seu rosto.
BANHEIRO- INT./DIA
PRESIDENTE BORGES
É ele não?
O homem de fraque concorda com a cabeça.
HOMEM DE FRAQUE
… Ele compartilha desta sua opinião.
Ele está aqui há dois mil anos e ainda espera.
Dia após dia, transforma água em vinho, bebe e espera. O senhor entende?
Borges concorda.
HOMEM DE FRAQUE
Pelo próximo messias, pelo próximo salvador, por quem faça com que seu mito seja eclipsado e então ele possa finalmente… Descansar, senhor.
Sabe o que ele comenta a cada messias que surge e desaparece, senhor?
INSERT – BAR – INT./DIA
Jesus erguendo o copo no bar, como que em saudação.
JESUS
Boa tentativa, amigo.
Bebe o copo de vinho e limpa a boca com a palma da mão.
JESUS
Boa tentativa.
BANHEIRO- INT./DIA
HOMEM DE FRAQUE
Somos quem somos senhor. Este é o peso que carregamos. E isto vale para todos.
Algum dia, a última pessoa a lembrar de seu nome, irá dormir e morrer, senhor Presidente.
Os dedos de Borges seguem brincando com a folha de papel.
HOMEM DE FRAQUE
E neste dia, o senhor poderá partir.
PRESIDENTE BORGES
E você?
O homem de fraque retira uma pequena mancha da pia com um pouco de papel, o dobra e o coloca no cesto de lixo.
HOMEM DE FRAQUE
Senhor?
PRESIDENTE BORGES
Quando você poderá partir?
HOMEM DE FRAQUE
Quando a última história for contada, senhor. Pela última vez.
O homem de fraque se aproxima e arruma o casaco levemente desalinhado de Borges.
PRESIDENTE BORGES
Eu mudei o discurso, sabe?
Borges mostra para o homem de fraque o pedaço de papel.
PRESIDENTE BORGES
Eu improvisei.
O homem de fraque escuta impassível.
PRESIDENTE BORGES
Quando fomos estrear a faculdade, antes do tiro. Era uma faculdade pequena, e o discurso era tão bom que eu resolvi guardar ele para outra ocasião.
Borges sorri amargo.
PRESIDENTE BORGES
É sempre bom ter um bom discurso para qualquer ocasião.
HOMEM DE FRAQUE
É sim, senhor.
Borges concorda com a cabeça, respira fundo. O homem de fraque dá espaço.
Vai caminhando em direção à porta, a abre, a luz quase o ofusca, o ambiente é lânguido.
Começam a tocar no piano “Heavens Hop” de Cole Porter, silhuetas aplaudem e levantam copos.
O Branco começa a tomar conta da tela. A música segue, as saudações também. Surgem as legendas.
LEGENDA
Os progressos do Presidente Borges levaram à unificação total da América do Sul, transformando-a em um grande bloco econômico, livre de fronteiras.
Ele demorou treze séculos para ser esquecido.
Seu discurso na Irmandade foi um imenso sucesso.
FADE OUT
Muito bom. Gostei do super presidente.
Já havias comentado comigo há algum tempo sobre essa história. Eu já tinha achado ótima e lê-la na forma de script ficou muito mais legal. Gostei muito. Parabéns!
Valeu boss, cara, viu eu último e-mail?
Sinceramente, é raro achar quem goste de escrever assim… Texto magnífico! E não é difícil por ele em prática! Seria bom que você tentasse; precisa-se de mais filmes assim, filmes brasileiros e reflexivos ao mesmo tempo…
Cara, foi linda a história, o jeito como foi contada… Parabéns, merece admiração! ‘-‘
Lucas, obrigado mesmo, comentários que nem este dão aquele gás para seguirmos adiante.
Quem sabe em breve não vemos um Presidente Borges nas telinhas.
Um grande abraço e obrigado.